reportagem especial

'Meus filhos tinham pena: coitado do pai, bêbado de novo. Tinham pena, mas não tinham respeito'

Pâmela Rubin Matge

Foto: Pedro Piegas (Diário)

Evandro*, 58 anos, é microempresário do ramo alimentício. Na tarde da última terça-feira, ele recebeu a reportagem do Diário na casa onde mora para relatar seu histórico de luta contra o alcoolismo, já estancado há seis anos. Ele é um dos entrevistados da reportagem especial deste fim de semana. Atualmente, é divorciado, pai de quatro filhos e avô de seis netos. Para ele, acessar seu passado é uma necessidade, e compartilhar publicamente a própria experiência, um compromisso:

- É doloroso relembrar, mas é preciso. Se uma, apenas uma pessoa ler, se identificar e se encorajar a largar do álcool, já fico grato

:: REPORTAGEM ESPECIAL - DO CAOS À RECUPERAÇÃO, RELATOS DE QUEM CONVIVE OU SUPEROU O ALCOOLISMO EM SANTA MARIA ::

Confira a trajetória de Evandro em três atos:

 DA CURIOSIDADE  À DEGRADAÇÃO
Na década de 1960 e 1970, o guri se tornava homem quando tomava um trago com o pai. Era visto com naturalidade o fato de meninos, por volta dos 12 ou 13 anos, começarem a beber. Foi assim com Evandro, que, aos 15, tomou o "primeiro fogo". Segundo ele, era uma cultura da época ou uma ignorância, que ele evita taxar como irresponsabilidade. Até porque ele era "rodeado de álcool". O tio, o vizinho e os amigos bebiam. Aos 21 anos, Evandro casou-se e, aos 25, encontrava-se dominado pelo consumo de bebidas alcoólicas.

- O fogo é ruim, mas a tonturinha é boa. A coisa foi indo até eu não ter mais noção de que, se eu bebesse o primeiro copo, eu não parava até cair dormindo - lembra.

No início da vida adulta, ele trabalhou no ramo da fotografia, que virou seu ofício por 15 anos. Foi quando as consequências do álcool passaram a afetar gradativamente sua atividade profissional:

- O ruim sempre foi o outro dia. Sabes aquele ditado: "Evite a ressaca, mantenha-se bêbado"? Para nós, dependentes, é realidade. Lembro de trabalhar em batizados, aos domingo de manhã. Acordava 6h30min e ia para o bar tomar um "liso" (cachaça pura) para parar de tremer e conseguir segurar a câmera fotográfica. Era como tomar um calmante, uma injeção na veia. Era o famoso "regular a lenta".

Conforme Evandro, as doses foram aumentando e tornaram-se uma autossabogem: ele só se sentia aliviado pela mesma substância que o causava dor. As bebedeiras emendavam a sexta-feira no sábado e no domingo.

 - Achavam-me caído por aí. Eu não lembrava de nada. Cheguei a tomar álcool de cozinha. Tinha chegado aquele o momento em que tu achas um jeito de beber a qualquer hora. O problema é que eu ficava triste e deprimido, tinha autopiedade e pensava: "Como estou com pena de mim, vou tomar mais um copo". Virou um ciclo, um inferno - define o microempresário.

DA NEGAÇÃO AO TRATAMENTO
Por duas ocasiões, Evandro foi internado no antigo Serviço de Recuperação de Dependentes Químicos (Serdequim). Lá, ficava sete dias para desintoxicação e direcionamento psicológico. Passou quase três décadas incorrendo em recaídas e tentativas frustradas de recuperação. Chegou a frequentar grupos de autoajuda mútua, mas não seguiu. Ele conta que mentia aos outros e a si próprio. A essa altura, os subterfúgios para poder beber estavam fora de controle.

- Chegou a um ponto que o álcool era parte de mim. Não me importava se eu era um fracassado, só precisava beber. Levei anos empurrando com a barriga. Faltava o serviço. Trabalhava atendendo ao público e contava as horas para chegar o meio-dia e eu pode beber. Poderia ser normal para muita gente tomar o aperitivinho, mas, para mim, fugia da normalidade, pois eu aguardava por aquilo. Depois, esperava chegar na tardinha quando encerrava o expediente para eu tomar à vontade. Até que eu comecei a beber às 16h. Tinha garrafas escondidas para tomar " só um gole". Era uma tortura trabalhar, mas eu precisava, pois tinha meus filhos. Eu até não parecia bêbado e trôpego atendendo, mas cheirava a álcool. Hoje eu sei porque não cresci economicamente e em todas as áreas da vida pessoal. Tu te tornas um trapo humano. Tu te liquidas, o organismo e a moral - resume.

Foi a aceitação da doença e a psicoterapia, segundo Evandro, que abriu caminhos para a recuperação. Foram necessários medicamentos e consultas que hoje somam 22 anos de tratamento:

- Custa a cair a ficha que tu é dependente e que o problema não é o último copo, mas o primeiro. Aí, a psicoterapia foi fundamental. Há a pré-disposição genética, mas acho que todo dependente químico tem um motivo por trás disso. Um trauma, um problema. Comecei a me tratar com psiquiatra e entendi que o alcoolismo era a ponta do iceberg. Eu buscava me soltar, ser extrovertido, pois sempre fui tímido. Então, descobri que também tinha depressão à beira de pensar em suicídio. Como o álcool libera a timidez e dor a qualquer um, o que acontece? A gente bebe e essa dor anestesia. Mas é como uma dor de dente: tu sabes que precisa arrumar. Uma xilocaína alivia por algum tempo, mas se não tratar, a dor volta. O álcool é da mesma coisa. E é preciso querer tratar e ter muita força de vontade para isso - relata.

Foto: Pedro Piegas (Diário)

APOIO FAMILIAR PARA RECOMEÇAR
A ex-esposa, o filho mais velho, a irmã e até os pais acompanharam o tratamento de Evandro por anos. Ele é enfático ao mencionar que, se existe um doente alcoólico em uma família, todos ficam doentes juntos. Mas foi com o apoio dessas pessoas que todo o dia 7 de dezembro, desde 2013, vira festa com direito a bolo e docinhos. Ele comemora mais um ano livre da bebida. Para isso, implementou mudanças drásticas na rotina. Entre elas, o afastamento de pessoas, de locais e de hábitos: 

- Hoje eu sou respeitado pela minha família. Há seis anos, eu era digno de piedade. Meus filhos tinham pena: coitado do pai, já está bêbado de novo. Tinham pena, mas não tinham respeito. Sei que nunca posso me considerar curado e passei por momentos difíceis, pois até uma propaganda de TV pode te levar a recair, a ter um flashback a dar a fissura - aquela vontade incontrolável de beber. Por isso, eu nunca mais tive um champanhe dentro de casa para brindar com um amigo. Vinagre nem pensar e desodorante só uso sem álcool. Evito certos lugares. Cada dia é uma vitória e pretendo ter muitos dias vitoriosos, sempre como apoio da família, pois sozinho, tu não consegues.

* Nome fictício, pois o entrevistado pediu para não ser identificado


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